O período de férias propicia invariavelmente, profícuos momentos de reflexão, mas também uns curiosos devaneios na mente de um qualquer praticante de Orientação, que se preze. À falta de provas onde o orientista dê largas às suas inatas capacidades de navegação, raciocínio e pastorícia, um tipo vê-se a braços com uma infindável sequência de flashbacks, que lhe toldam os pensamentos por completo, não dando espaço a outro tema, que não sejam os intensos e variados episódios da sua mui apaixonada modalidade.
Não sei se é uma faceta (ou psicose) comum à maioria da rapaziada, mas no que a mim diz respeito, no período de defeso sou atacado diariamente por constantes imagens e factos passados, que me deixam a sofrer de imensa saudade das florestas (até dum montito de pedrolas sinto falta). Afinal, a última actividade orientista onde estive presente, já foi quase há dois meses e ainda vai decorrer outro, sem que eu tenha a oportunidade de pôr a vista em cima dum terapêutico “laranjinha”.
Na realidade, as férias são sinónimo de longas deslocações, sejam elas de automóvel, barco, avião ou…de comboio…ou…de boleia. E era aqui onde eu queria chegar…uff…cansativo não? Precisamente ao meio de transporte com que os orientistas mais se identificam. A célebre e pouco ética “boleia”, que não raras vezes se transforma nos famigerados “comboios”, de desportivismo duvidoso. Aplicando um silogismo ao nipónico “bala”, há quem os apelide de “comboios-cola”.
Um atleta depois de apanhar este cómodo reboque, não o larga mais senão quando se encontrar no seu destino (pelo menos nas imediações). Situações perfeitamente normais, a que toda a gente já recorreu (apareça o primeiro que me desminta), mas que poucos têm a coragem de assumir. Quanto mais elevada for a propensão para a corrida, maior será a probabilidade de viajar nestes comboios. São rápidos e normalmente eficazes, mas para infortúnio de alguns, dependem em demasia do “maquinista”.
Ora, como facilmente podem deduzir, o “berdadeiro” não é beneficiário frequente destas mordomias. Primeiro, porque não tem pachorra para este género de veículos; segundo, a sua velocidade não lhe permite entrar nas carruagens em andamento, já que se deslocam a ritmos completamente desadequados, podendo originar consequências imprevisíveis.
Gostaria que não pensassem que me estou a armar em anjinho. Apenas não me dá gozo o uso dos comboios e também não disponho de pernas suficientes para os apanhar. - “E se tivesses? Como reagirias?”. Bom, a resposta ficará para outra altura, até porque confesso não sou nenhum virgem em boleias, colas, comboios e afins – a necessidade faz o ladrão – mas não é quando se quer, é quando se pode (sobretudo).
Para além das contingências normais a uma prova de orientação (local correcto, no momento certo) é necessário possuir algumas características para se poder viajar confortavelmente num bom comboio, pois diz-me a experiência que não é “cola” quem quer. Sei bem do que falo. Continuo a frequentar sessões de terapia (a próxima será em Manteigas), para ultrapassar os traumas que estas andanças me causaram.
Há tempos, no decorrer duma das etapas do Portugal O`Summer, que se realizou na Tocha, após uma pernada menos conseguida, que me derreteu os neurónios, tive a desfaçatez de tentar aproveitar a passagem do campeão do meu escalão (perseguido por duas sombras) e seguir igualmente na sua peugada.
A ideia era pelo menos fazer uma pernada, no intuito de aliviar algum do atraso acumulado, até porque o próximo ponto distava uns acessíveis 400 metros. O problema é que correr com um olho na “lebre” e outro no mapa, não sobra nenhum para cuidar onde pomos os pés, e ao fim de vinte metros, catrapumba…esparramei-me ao comprido, depois de tropeçar no raio dum ramo inconveniente. Lá se foi a minha boleia.
Curiosamente, uns tempos mais tarde, em Arraiolos, não tendo aprendido a lição, voltei a perseguir o mesmo atleta (para o que me havia de dar, sou masoquista “`tà-se” mesmo a ver), novamente após um arreliador atascanço, com um desfecho idêntico, mas com contornos algo diferentes.
Corri como um desalmado cerca de 600 metros atrás do homem (quem nos conhece, sabe o esforço a que me sujeitei), sempre com o mapa presente, mas quando começava a desconfiar que ele se tinha desorientado (o único ponto em que isso lhe aconteceu), perco-o de vista e fiquei no meio do montado à procura da rolha, gastando mais uns minutos a relocalizar-me – vai ganho que me dás perda (só o tornei a ver na meta). Nos tempos que correm não se pode confiar em ninguém, hehe!
E continuando, “istórias” deste tipo são como as cerejas, na etapa de Pataias da época transacta, que pontuava para o WRE, onde participaram uma chusma de estrangeiros, tentei sem resultado, usufruir duma “carona” fortuita dum simpático (leia-se vagaroso) elite inglês. Fruto duma infeliz coincidência, marcámos dois pontos seguidos, um com o rapaz nos calcanhares e outro (um controlo técnico a 50 metros) logo a seguir a ele.
Passou-me pela cabeça (tipo alucinação) que o próximo poderia ser também comum, dado que só faltavam picar dois pontos e como a direcção parecia a mesma…zás…nem pensei…ou antes, pensei que conseguiria segui-lo aquelas poucas centenas de metros. Por acaso até fui capaz…uops…mas a cota dele não era a minha…que se encontrava situada uns cem metros para a direita. Digam lá se isto não é castigo da Santa Maria dos Orientistas?
Mas um verdadeiro e lotado comboio apanhei eu numa das jornadas da Pedra Bela, no apuramento para um campeonato nacional absoluto. Toda a gente tem conhecimento, que os percursos do primeiro dia são traçados de forma idêntica, para a totalidade dos escalões. Assim, não é de estranhar que ao fim de meia dúzia de balizas, se formem grupos numerosos de excursionistas, usufruindo uns tantos “berdadeiros”, da sabedoria técnica de uns quantos especialistas.
Como o terreno no Gerês não permite grandes velocidades, o comboio superiormente conduzido por dois craques, foi ganhando unidades e apesar de um ou outro ponto de dispersão, acabamos por concluir uns nove ou dez atletas, de quatro escalões diferentes, dentro do mesmo minuto. Um autêntico engarrafamento de “colas”, ou será que apenas aproveitaram uma providencial oportunidade? Porque não?
Para terminar, que o relato deprimente e desavergonhado já vai longo, ainda tenho presente mais um episódio de “cola” frustrada, que se passou no Bom Sucesso em Peniche. Quando me aprestava para controlar um ponto, algures numa reentrância, depois de muito atolar na areia, sinto um resfolegar assustador uns metros atrás, passando por mim uma verdadeira locomotiva (uma das muitas do meu escalão…só que este é cartógrafo e brincalhão), quase me atropelando com a sua sobranceria.
De modo a castigá-lo pela “insolência”, decidi efectuar a pernada seguinte no seu encalço, no sentido de aprender alguma coisa com a sua navegação, pois existiam várias opções de progressão e ele costuma ter bom gosto nas escolhas, hehe! Passei um mau bocado para não o perder de vista, mas finalmente descortinei o prisma ao longe, no meio duns arbustos (com os bofes em desespero).
Enquanto me aproximava, tive o azar de momentaneamente analisar o mapa, para ver se dava para fazer mais um ponto com acompanhamento e quando levanto a cabeça…ai, ai…sou fustigado em plena face por uma silva, que para além de me fazer parar abruptamente, rasgou-me o nariz e cancelou a “aula de orientação”.
Foi mais um castigo, desta vez por maus pensamentos - não chegava um ponto…não? Simplesmente ridícula a minha incompetência como “cola”. Até para se ser batoteiro são necessárias determinadas qualidades, que manifestamente eu não possuo. Ainda bem…digo eu!
- “Cola? Alto e pára o discurso! Segundo a opinião de peritos deste género de actividade, só pode ser considerado um comportamento de “cola”, quando a perseguição se mantiver no mínimo três pernadas consecutivas”. - Yes! Estou inocente! Dificilmente aguento uma, não ouso sonhar com duas e três nem se equaciona!
Espero não ser crucificado por estas inocentes confissões de actos pouco recomendáveis, que no fundo não prejudicaram ninguém e apenas provocaram abalos constrangedores no orgulho do “berdadeiro orientista”. Considerem o actual texto como uma generosa expiação dos meus (e vossos) pecados de navegação e tenham bem presente, que o “crime não compensa”. E já agora fiquem sabendo, que enjoo nas viagens de comboio.