Temendo o pior (II)

Um tipo que já deu provas irrefutáveis do gozo que a modalidade lhe provoca (o actual texto é um testemunho evidente), não tinha um simples resquício de desejo em voltar ao terreno e subir as proeminentes reentrâncias novamente. Nem falar no assunto me era agradável.

Duas unhas que as “mata-velhos” de Pedrógão tinham pisado, a exigente transposição dos fossos “XXL” de Brasfemes tinham-nas feito cair; os joelhos rangiam e estavam torcidos num oito; as costas apresentavam as dobradiças empenadas; a quantidade de arranhões dava para compor um mapa; estava encharcado até aos ossos e o sintoma mais preocupante…não sentia a falta de uma bejeca. A ajudar à festa, a minha mulher mal terminou, imediatamente decretou – “Por hoje basta! De tarde não me apanham. E tu também não deves ir”. Por infeliz coincidência ela tivera o mesmo percurso que eu…e vejam lá…o das juniores.

Aqui exige-se um momento de reflexão. Será que as mulheres de quarenta e tais, homens de cinquenta e tantos e meninas de dezoito ou dezanove anos dispõem de idêntica disponibilidade física? Se porventura a conclusão for afirmativa, quem me roubou a frescura e o vigor dos verdes anos?

O que me leva a crer, é que começam a ser demasiadas provas com um grau de exigência desadequado para a minha faixa etária, passe o relevante facto de haver uma mão cheia de “ET`s” que contrariam esta afirmação. Haja alguém que compreenda, que nem todos se chamam Albano, Zé ou Jorge e que na minha opinião deviam proibi-los de competir neste escalão (hehe!). Todas estas confusões vêm afectando o meu equilíbrio emocional, começando a sentir uma desmotivação preocupante. Uma coisa é o grato sentimento de satisfação, outra o de penoso sacrifício e desapontamento.

Perante este quadro, o “berdadeiro” encontrava-se à beira de um knockout. A minha mulher e filhas inventaram uma catadupa de razões, para me influenciar e convencer-me a não partir na parte da tarde. - “Não te chega a tareia que levaste? Olha que vai chover a cântaros! A lama não te incomoda? Com certeza tens de subir ao marco geodésico! Ainda rebentas uma variz com o esforço! És dos últimos a sair, vais chegar de noite!” – Uops! Tinha desligado a ficha para não as ouvir, pois a minha vontade já era pouca, não necessitava de gente a atazanar-me o miolo, contudo a observação das horas era pertinente e colocou-me em alerta.

Se pretendia terminar a prova, não poderia correr o risco de apanhar a noite e para o evitar não me seria permitido ultrapassar a hora e meia de percurso. Esse sim, era um factor determinante e que me coibia a partir. Só que o apelo dos prismas foi mais forte e à hora marcada (17,08), contrariando todas as vontades (incluindo a minha), o “berdadeiro” meteu os pés doridos ao caminho, tentando cumprir uma missão quase impossível – terminar antes de anoitecer.

Em condições normais, os 4.700 metros e 19 controlos não configuravam obstáculo de monta. Mas, debilitado fisicamente, ser dos últimos a partir e com a noite a cair rapidamente, a tarefa passou a ter contornos de proeza, para um mais que desmotivado “berdadeiro”. Para cúmulo, no minuto -1 ao olhar as costas do mapa, quase me dá uma vaipe. O percurso era comum, para além das meninas e das damas veteranas, imaginem só, também aos seniores femininos! Não sou rapaz de fugir ao contacto com o sexo oposto, mas não vos parece promiscuidade a mais? Os “velhos” de braço dado com a fina flor das damas orientistas? Onde já se viu o semelhante? O lobby anti-veterano teria iniciado a sua campanha sub-reptícia? Há situações que podem causar traumas irreversíveis (medo…muito medo).

Encolhi os ombros e já que ali estava, atirei-me inconscientemente para os braços da desgraça. Mal entro no mapa, na progressão para o segundo ponto (“115”), surge-me um trilho rasgado por uma escarpa acima, qual íngreme escada de cerca de 150 metros, composta de onze curvas de nível (leram bem, não é ficção), que colocou as minhas vertigens em polvorosa. Exactamente uma bela pernada, a justificar uma não menos racional desistência.

No entanto, como ainda não me encontrava no meu perfeito juízo, recorri ao meu instinto masoquista, trepando aquela parede de forma aracnídea, agarrando-me desesperadamente a tudo o que aparecia. Uma subida atroz, que a existência de lama veio complicar, proporcionando um ritmo ridículo, de dois passos para cima, três para baixo (upa, upa…ssst, ssst, ssst).

Abreviando, fui subindo e descendo reentrâncias bem escorregadias (por vezes de forma arrojada para as minhas capacidades), em progressões solitárias, sem grandes equívocos na orientação, mas à força de muito desgaste físico, que foi resultando num percurso assustadoramente lento, sobretudo para quem se confrontava com um pôr-do-sol iminente e inexorável.

O final da “istória” estava há muito previsto. Ao passar o ponto de espectadores, mal vislumbrando a Arena na penumbra (e a minha mulher e filha a mandarem-me parar), ainda pico um outro controlo no início de mais uma demolidora e desnecessária escalada, obrigando-me a fazer contas de cabeça. – “Faltam dez pontos, mais de dois quilómetros para calcorrear, convém não desobedecer à Cláudia, tenho de ultrapassar o monte, estou nas lonas, o clube perdoa-me a multa, só disponho de mais meia hora de luminosidade e a escuridão amedronta-me”. Ok! A decisão inteligente apenas pecou por tardia – desistência efectiva – desta vez não se limitando aos ameaços (hehe!).

Espero estar enganado, mas as provas ao melhor estilo aventureiro começam a ser repetitivas (devem estar na moda) e, no que me diz respeito, de difícil digestão. Tivesse eu veia de atleta radical, com certeza não seria praticante de Orientação, talvez andasse pelos meandros do Skysurf, Montanhismo, Rafting ou Downhill a testar os meus limites e a pavonear cicatrizes.

O paradoxo da questão é que eu até senti bastante empatia com os mapas. Apreciei de sobremaneira a variedade dos terrenos e nunca perdi os prismas de vista, o que é sempre moralizante. Apenas não entendo por que motivo se elevou a fasquia, para uma prova regional, em final de época e ainda por cima com a participação do Desporto Escolar. Em definitivo e por muito que me custe dizê-lo, não havia necessidade de tamanha exigência física ou serei o único que ficou de cama com os pés ao alto?

Sinceramente, se o prazer que desfruto nesta actividade se está a transformar de modo progressivo em resignação, aborrecimento e frustração, as pastilhas para a azia não irão ser solução e começo a temer o pior para o futuro do “berdadeiro orientista”…e não só. 

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