Sérgio Dias corre para a liberdade

sergio dias
 
Muito/as conhecem o Sérgio Dias. Outro/as, conhecem o “azar que lhe bateu à porta”. Também há quem não saiba quem é o nosso entrevistado. Para todo/as, eis a história de um lutador.
 
No dia 22 de Outubro de 1984, em Lisboa, nasceu o oitavo de uma família de dez irmãos, filho de uma empregada de limpezas e de um marinheiro (mais tarde, calceteiro). Mas, não foi um nascimento normal.
 
Sérgio explica-nos porquê. “A minha mãe estava em trabalho de parto e ia de táxi para a Maternidade Alfredo da Costa. Eu estava com pressa de sair e acabei por nascer, mesmo ali, no Marquês de Pombal. Foi o taxista, quem ajudou ao parto”, conta-nos, rindo.

O início
 
Quando criança, Sérgio Dias vivia na Estrada Militar, na Amadora.
 
O atletismo surgiu por brincadeira, como nos explica: “Eu ia fazer cinco anos. A Cândida Varela era minha vizinha e nunca perdia, nas “brincadeiras” que se faziam no Sporting Clube da Reboleira. Um dia, convidou-me para ir com ela. Eu disse para mim mesmo que não ia perder com uma miúda, mas, … perdi. A partir daí, o Sr. (José) Marques passou a ser como um pai para mim, até hoje. É uma pessoa fantástica, não tenho palavras para o descrever”.
 
Depois, o tempo foi passando e o nosso entrevistado permaneceu ligado ao seu clube, a sua “família”.
 
No começo, o nosso treino era mais uma brincadeira. O Sr. Marques incentivava-nos a estudar muito e a sair dos maus ambientes do bairro, que era problemático. Ajudava-nos mesmo em tudo, até nos trabalhos de casa e, felizmente, nunca tive problemas, nunca entrei numa esquadra”, relembra.
 
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Foi sempre um menino de ouro, respeitador e trabalhador e não gostava de perder nem a feijões”, relembra o técnico do emblema amadorense.

A passagem para o Maratona e a ascensão meteórica

Desde Benjamim que Sérgio Dias demonstrou possuir enormes potencialidades para a prática do atletismo e esteve vários anos sem perder uma prova.
 
A sua evolução não passou despercebida, aos olhos dos grandes clubes nacionais, e foi sem grande surpresa que o “damaiense” ingressou no Maratona Clube de Portugal, formação que nele apostou como uma das grandes esperanças do meio fundo português.
 
Eu ganhava muitas provas na escola e a Nádia, filha do João Junqueira (o meu “padrinho”), era minha colega. Ela trazia-me vários equipamentos de marca e eu até cheguei a pensar que ela gostava de mim”, relembra Sérgio, rindo.
 
Um dia, ao sair da escola, ela apresentou-me o pai e os meus olhos começaram a brilhar. Só o tinha visto na televisão e nos jornais. Foi muito simpático e perguntou-me se eu queria ir fazer um treino no dia seguinte, Sábado. Como era dia de descanso, aceitei. No Estádio Nacional, fiz um teste de mil metros e passei. Estavam presentes, o Cipriano Lucas e o Prof. Rafael Marques. Eu e o Luis Pinto, entrámos no mesmo dia”, prossegue.
 
Estava no 1.º ano de juvenil e, a partir daí, os êxitos sucederam-se. Eis um resumo, na primeira pessoa: “Fui logo vice-campeão nacional de 1500 metros, campeão regional da mesma distância, vice-campeão nacional dos 2000 metros obstáculos e fui representar Lisboa no Olímpico Jovem. Como júnior, comecei a fazer alguns treinos bidiários e, no segundo ano, ganhei quase todas as provas em que participei. Também, fui quinto e melhor português, no Crosse Internacional de Loures, 3.º no Crosse de Toledo e ganhei o de Fuensalida. Ainda como júnior, fui vice-campeão nacional de crosse e vice-campeão nacional de 1500 e 3000 metros em pista coberta”.
 
A queda
 
Mas, como alguém já disse, a vida é feita de encontros e desencontros e foi num desses desencontros que a vida (e a carreira) deste atleta sofreu um grande revez.
 
Estava na minha melhor forma de sempre. Sempre ouvi falar da altitude e, com a ajuda do meu cunhado, decidi fazer um estágio de um mês em Tenerife. Queria fazer uma surpresa a todos, quando voltasse. Estava a preparar-me para o Europeu de Crosse de Sub-23. Entretanto, o meu pai tinha sofrido uma trombose no trabalho, que o deixou incapacitado numa cadeira de rodas. Era eu que o ajudava, até as fraldas lhe trocava. Um conhecido disse-me que o pai tivera um problema semelhante e que fora tratado com um medicamento feito no Senegal. Estive em Dakar três dias e, mesmo assim, não deixei de treinar. No aeroporto, havia muitas crianças a pedir. Dei cinco euros a uma (que era o que tinha na mão), o meu casaco e a mala da selecção nacional que levava comigo. Antes de lha oferecer, mesmo lá no aeroporto, comprei uma mala para mim, onde guardei as minhas coisas. Com o medicamento na mão, voei para Las Palmas, de onde iria para Tenerife. Numa inspecção de rotina, a polícia alfandegária pediu-me para ir para uma sala reservada. Lá, perguntaram se podiam revistar a mala e rasgá-la. Disse que sim a tudo. Descobriram quase três quilos de droga num fundo falso e disseram-me que estava detido. Puseram-me as algemas e … desmaiei na mesma hora. Não acreditava no que me estava a acontecer. Fui condenado e, apesar de todas as cartas que enviei para as mais altas personalidade do país, nunca tive ajuda para provar a minha inocência”, dispara de rajada, emocionado.
 
Passados três anos, conseguiu a extradição para Portugal, para o Estabelecimento Prisional do Linhó.
 
A exemplo do que fizera antes (onde corria num espaço de cem metros quadrados), também, aqui, nunca deixou de treinar. “Todos foram espectaculares comigo, nomeadamente o Director, Dr. Paulo Gouveia e o Chefe de Guardas, Dr. Norberto Rodrigues”, agradece.
 
Nas saídas precárias que teve, ganhou o Crosse da Abóboda e foi segundo no o Linhó e na corrida aberta da Meia-Maratona de Lisboa, esta época.

O recomeço
 
Mais recentemente, surgiu-lhe uma oportunidade única.
 
No começo de Setembro, ao abrigo de um protocolo entre a Câmara Municipal da Amadora e a Direcção-Geral dos Serviços Prisionais, começou a desempenhar funções no Complexo Desportivo Municipal do Monte da Galega.
 
A vida de Sérgio mudou radicalmente. Passou para um regime semi-aberto e foi transferido para Monsanto, onde regressa todos os dias, depois do “trabalho”. Fruto do seu comportamento, também lhe foi concedida a possibilidade de treinar na pista daquele Complexo e Sérgio Dias espera alcançar a liberdade definitiva dentro de poucos meses.
 
Eis o atleta na primeira pessoa: “O trabalho tem sido muito bom. Sou “multifunções” e sinto-me bem integrado e adaptado. O que mais gosto é o acompanhamento dos utentes. Também aproveito para pôr em prática alguns dos cursos que tirei na prisão em Espanha, como o de monitor desportivo, o de reiki e o de auxiliar de administração, ”.
 
sergio dias
 
Prova desta perfeita integração, são as palavras que Nuno Trancoso, coordenador da Divisão de Desporto da Câmara Municipal, exprime sobre Sérgio Dias.
 
Muito se fala sobre os valores que o desporto encerra. Muito se fala e se escreve, mas, por vezes, não se pratica. A forma como o Sérgio tem desempenhado as suas tarefas de apoio ao funcionamento do Complexo Municipal do Monte da Galega são uma prova de que as dificuldades da vida, tais como as de uma corrida de fundo, podem ser ultrapassadas, se a vontade for inquebrantável. Cair, na passagem de uma barreira, pode significar o adeus à vitória, mas, não é motivo para desistir da corrida. Voltar a treinar, voltar ao tempo onde as decisões são fruto do próprio desempenho, tem sido o objectivo perseguido pelo Sérgio, nesta fase da sua vida, da sua carreira como atleta. Com ele, partilhamos os êxitos desportivos e estamos muito satisfeitos, pela forma como tem cumprido as suas tarefas nesta casa habituada a viver as derrotas e as vitórias. Parabéns, Sérgio. Estás a ganhar”, declara o responsável.
 
sergio dias
 
Apesar da falta de suplementos vitamínicos e de outras condições, não deixa de lutar.
 
Já ganhou a Légua Cidade da Amadora e a prova aberta da Meia-Maratona do Centenário.
 
É com emoção que fala daqueles que nunca o abandonaram. “O Sr. Marques, o Maratona e o Prof. Rafael, a minha família, o meu cunhado, a minha namorada da altura e alguns amigos como o Nani, o Fernando Silva, a Ana Dias e o massagista Café, entre outros”.

O futuro
 
Acredito que ainda posso vir a ser um grande atleta e luto todos os dias para ser um Rui Silva, um Domingos Castro, os meus ídolos. Quero ser um dos melhores do atletismo nacional. Espero arranjar um trabalho, organizar a minha vida e constituir família com a minha companheira, Ana Lúcia”, afirma, simples como sempre.
 
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Quando questionado sobre que análise faz de todo este seu percurso de vida, Sérgio Dias refere que “dói-me muito, porque sei que não mereço isto que passei. Em Espanha, tentei suicidar-me várias vezes e, se não fosse o apoio daqueles que estiveram sempre presentes, não sei se, agora, estaria aqui” e conclui com uma mensagem de esperança para todo/as. “Nunca deixem fugir os sonhos. Por mais mal que estejamos, há sempre uma luz à nossa frente”, afiança.

Rafael Marques
 
Rafael Marques, desde há muito, o seu treinador e “um pai”, nas palavras do próprio Sérgio Dias, também fez questão de exprimir os seus pensamentos, sobre o passado, o presente e o futuro do atleta.
 
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- Que potencialidades viu, o Maratona, no Sérgio Dias, para o contratar e como foi a sua adaptação ao novo clube e aos novos métodos?
 
- O Sérgio Dias pertence a uma geração onde se encontram os melhores portugueses. Foi vice-campeão nacional de corta-mato júnior (o que não é fácil em Portugal). Foi internacional júnior e está no Maratona Clube de Portugal há 10 anos. Foi um dos promissores atletas portugueses, mas, teve a infelicidade que toda a gente conhece.

- Qual foi a postura do Maratona, durante esta paragem? Que tipo de apoios deu ao Sérgio?
 
- A postura do Maratona foi a de dar tempo ao tempo e estar do seu lado, dando-lhe esperança, força e o carinho que ele sempre mereceu.

- Agora que ele se encontra numa nova fase da sua vida, ainda acredita que ele poderá atingir um patamar elevado na modalidade? Se sim, até onde pode chegar?
 
- No atletismo e à semelhança de todos os desportos, é necessário ser persistente, humilde, trabalhador e acreditar no sucesso. O Sérgio sempre sonhou ser um grande atleta e isso é meio caminho andado para ter bons resultados. Nesta fase difícil, aos 25 anos de idade, tudo depende dele. Ainda tem doze anos pela frente, se tiver a humildade e persistência que sempre teve, para demonstrar o seu valor. Em Portugal, no atletismo, e observando as camadas jovens, penso que ainda vai a tempo. Depende só dele querer. Já restam poucos. Como se diz na gíria, ele pertence à última “fornada”.
 
Entrevista e Fotos de José Duarte
 
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